domingo, 4 de março de 2012

[DT] Alonso x Leonardo – Surrealismo no Cinema

INTRODUÇÃO

ALONSO


Saudações leitores que irão contemplar esse debate teste do Projeto de Debates via Blog Duelos Retóricos.  

Saudações Leonardo Levi meu oponente nesse evento que irá revolucionar os debates e marcar uma nova etapa da comunidade da qual somos os pais fundadores!

O tema parece complexo a primeira vista devido trazer um movimento artístico do surrealismo o qual abordaremos com foco da influência desse mesmo movimento nas obras cinematográficas.

Os elementos surrealistas levam em conta três fatores centrais: Irrealidade, Abstração e Inconsciente. Nesse teor a imaginação livre de qualquer orientação racional e lógica fazendo assim contraponto com os pontos de vista artísticos de obras com fulcro baseado no real, consciente e não abstrato.

Para exemplificar seria como se tivéssemos duas espécies de filmes um baseado nos sonhos e outros em fatos reais concretos. Essa analogia simplifica o formato surrealista para uma fórmula imediata para que todos possam compreender com mais clareza do que se trata.  

O filme “O mundo imaginário do Dr.Parnassus” na minha opião traz muito desse teor surrealista em seu enredo: “O Dr. Parnassus (Christopher Plummer) tem o dom de inspirar a imaginação das pessoas. Dono de uma companhia de teatro itinerante, ele conta com a ajuda de seu assistente Percy (Verne Troyer) e do mágico Anton (Andrew Garfield) para oferecer ao público a chance de transcender a realidade e entrar em um universo sem limites, o qual pode ser alcançado ao atravessar um espelho mágico. Tony (Heath Ledger) foi encontrado pela trupe dependurado em uma ponte, à beira da morte. Após ser salvo, ele passa a integrar a equipe, como forma de escapar de seu passado. Em uma tentativa de modernizar o show, ele termina por conhecer o novo mundo oferecido por Parnassus e passa por diversas transformações no decorrer de sua viagem. Só que esta mágica tem um preço e ele está perto de ser cobrado ao dr. Parnassus: sua preciosa filha Valentina”.

Este filme parece criar uma linha que separa o surreal do real e trata as duas coisas como elementos antagônicos. Além disso, nesse filme estão presentes os elementos centrais do surrealismo: abstração, irrealidade e inconsciente.

Tudo aquilo que advém dessas três esferas dos personagens como desejos, vontades e sonhos ganha uma forma de expressão dentro do surrealismo conseguindo com isso retratar a essência humana sob uma ótica diferente do realismo e da racionalidade estritamente lógica tradicional.

Pierre Reverdy um dos ícones da poesia surrealista menciona que existe uma imagem não da comparação entre os de dois mundos do real e surreal, mas sim uma aproximação de duas realidades afastadas. Essa idéia está presente no Dr. Parnassus de forma bastante objetiva de acordo com seu enredo.

Com base nisso podemos nitidamente notar que a linguagem e discurso surrealista surge de outro modelo da imaginação humana. Este ponto parte do irreal imaginário primordialmente, mas pode também surgir com base no real imaginário e se transformar em surrealidade ao passo que vamos tirando a lógica e racionalidade habitual do real e deixando que a livre imaginação molde nossa forma de pensar e ver determinada situação.

Sem dúvida isso é um elemento criativo “sui generis” que possibilita tratar no cinema sobre diversos assuntos e gêneros como dramas, filmes de terror e policiais. No drama vale citar um filme bem conhecido “A casa do lago” onde os protagonistas estão dentro duma “realidade surreal” de espaço e tempo. No terror temos “Psicose” onde o irracional e inconsciente de Norman Bates é o eixo do enredo do filme. No filme “Uma simples formalidade” de Tornatore aparecem esses elementos no limiar do real e surreal.

A filosofia surrealista é descobrir segredos universais contidos no imaginário do próprio ser humano o qual ele não tem acesso pela mentalidade formal da racionalidade lógica e concreta.

No cinema esse recurso é altamente útil, pois o roteiro passa ser a peça fundamental de construção do filme. O tipo de roteiro mais usado nesse sentido é criar um enredo não linear onde quem assiste o filme imputa significados ao que ele recebe diretamente via tela de cinema.

Os significados dessas interpretações são variados de espectador para espectador, mas grande parte dessas interpretações surgem do registro inconsciente do indivíduo e suas experiências mantidas como segredos em seu subconsciente e também consciente que podem se misturar para formar uma interpretação do filme.

Parece algo até mesmo psicanalítico e de fato existe essa possibilidade, pois o pensamento de Freud tem influência nesse movimento artístico em alguma escala.   

Termino aqui minha introdução e aguardo o Leonardo enviar a dele assim que possível para dar continuidade ao tema e experimentação desse novo formato de debates via blog.









LEONARDO

Saudações, grupo Duelos Retóricos.

Fala aí, Alonso!

Como você já disse, esta é a primeira vez em que um debate será inteiramente realizado no blog da comunidade e você acha que é possível que este feito se repita por outros membros e que vários debates sejam feitos aqui, daqui por diante. Vamos esperar e ver a reação das pessoas para sabermos se suas previsões eram sensatas ou não passavam de delírios surreais.

Então, já que tudo é inovador, que o debate seja surreal!

Façamos diferente do que faríamos em um duelo comum. Permitamo-nos explorar um lado lúdico que pode existir neste tipo de diálogo e discutamos da melhor forma possível, como elementos do surrealismo cinematográfico podem afetar as pessoas que apreciam essas obras?

Você sabe muito bem que boa parte do cinema dito “surreal” é acompanhado de uma série de cenas que remetem às mais íntimas extravagâncias comportamentais que refletem, de forma difusa, ideias e conceitos emaranhados em complicados significados, mas que ao desatento, parecem não fazer sentido algum.

A capacidade de se entreter com o improvável e de lutar para mudar o inevitável revela características marcantes da personalidade daquele que aprecia a sétima arte surrealista.

Agora, nunca pergunte ao autor de uma destas obras “o que é que você quis dizer?” por que a idéia central de toda a arte é a de que cada um deve ter sua própria interpretação e o autor estragaria a surpresa se revelasse o fio condutor que teceu toda narrativa.

Estes novos duelistas da New School adoram usar o termo “no sequitur”, como se fosse pecado, algo proibido para alguém de intelecto. Os surrealistas se deleitam com o impossível. Tudo o que é fora de contexto é, de alguma forma, engraçado, não é?

Assim como este parágrafo, ou mesmo este debate, que nada tem a ver com os outros que já aconteceram em nosso grupo.

Desenvolvida a partir do Dadaísmo, o objetivo da arte surrealista é nos fazer nos surpreender com algo improvável e nos causar emoções, tais como ocorrem com crianças, que experimentam pela primeira vez uma emoção.

Gostei da citação do filme do Terry Gilliam, que é um surrealista de nascença, expressando isso com o humor do Monty Python. Ele era responsável pelas animações de abertura e também dirigiu os filmes, sendo que boa parte do humor do grupo era embasado em situações totalmente fora de contexto, como uma cidade em que quanto mais engraçado as pessoas caminhassem, mais importantes elas seriam.

Ou então o episódio em que os atores descobriram que estavam dentro da televisão e que estavam sendo vigiados, prendendo-se paranoicos em uma sala.

Sem falar nos desenhos animados do gato Félix, que é um grande divulgador do surrealismo no cinema animado.

Você falou de como este universo onírico foi implantado neste meio artístico e fez bem em lembrar da influência das novas ideias de Freud de livre associação e análise dos sonhos, que são métodos amplamente empregados por artistas surreais, como forma de liberar a imaginação.

Como diria Salvador Dali, “Existe apenas uma diferença entre um louco e eu. Eu não sou louco.” Quem diz quem é louco? Classificações arbitrárias. Segundo a classificação do CID-10 da OMS, qualquer comportamento que destoe dos padrões estabelecidos pelas normas socialmente aceitas pode ser considerado esquizofrênico.

E é interessante como, na verdade, o histórico de esquizofrenia, que muitas vezes está relacionada com epilepsia do lobo temporal, pode levar a sintomas como aumento do potencial criativo e hipergrafia. Quando os quadros estão sintomáticos, esses indivíduos sentem uma intensa necessidade de escrever, o tempo todo e associam idéias de forma livre, sem regras, criando arte a partir de elementos mais intuitivos do que racionais.

A ideia de justaposição também é amplamente difundida, sendo que é quase impossível separar o que é o autor, o que é o expectador, o que é mentira e o que é verdade, mas mesmo assim, a ideia geral é repleta de significados e símbolos, que, para cada pessoa, se aplicam de formas diferentes.

Eu não sei exatamente quais foram os filmes surreais que o Alonso mais apreciou. A partir dos elementos destes filmes, poderíamos, como exercício lúdico, analisar onde nos identificamos com os elementos mais marcantes de cada obra.

Meus diretores favoritos são o chileno Alejandro Jodorowsky, o americano David Lynch, o canadense David Cronenberg e o dinamarquês Lars Von Trier.

E um dos meus filmes favoritos é uma animação do Richard Linklater, chamada Waking life, que é uma junção de uma série de diálogos filosóficos distintos de um personagem que está vivendo um sonho dentro do outro e tendo consciência disto.

O Surrealismo surgiu para revolucionar a experiência humana em seus aspectos pessoais, culturais, sociais e políticos. Livrando as pessoas de suas falsas racionalidades, elas são mais capazes de perceber as restrições das estruturas de seus costumes. Na política, já esteve associado ao comunismo e ao anarquismo, mas sua expressão está muito além daquilo que qualquer sistema humano possa propor, a não ser, talvez, pelo reino da “Rainha de copas” de Alice, no país das maravilhas.

Foi bom você ter citado Alfred Hitchcock, que para mim era um gênio e sabia como ninguém que a arte de revelar informações é mais interessante que as informações reveladas, em si, e isto é muito bem expresso no filme que você citou.

E por causa de sua influência, vou ficar por aqui para esperar pela réplica do Alonso.

Em seguida, comentarei a respeito dos filmes que ele citar e eu conhecer, assim como farei novas referências, para cruzarmos informações.

Até a próxima.

L.L.











RÉPLICA

ALONSO

O Leonardo Levi fez uma observação interessante sobre a famigerada New School se eles acham que o "non sequitur" um sacrilégio ou pecado na estrutura dos debates diante de filmes surrealistas ficariam zonzos e esbabacados sem compreender nada. 

Outro dado sobre isso é eles por modismo ler Nietzsche sendo que sua obra é totalmente sem uma sequencia sendo, portanto, fragmentário quanto aquilo que lhe vinha a sua mente durante a redação de suas obras. 

No tocante ao cinema do estilo surrealista eu identifico os roteiros como o fator mais preponderante para transmitir uma sequencia de idéias e impressões que mesmo fora duma sequencia linear, mas que estão dentro duma rotatividade que integraliza o enredo do filme como algo "sui generis" do imaginário do roteirista ou diretor.

Alfred Hitchcock por exemplo trabalha detalhadamente o roteiro muito mais do que as cenas em si mesmas e dirigia seus filmes com o se fosse um expectador da cena que escreveu deixando a atuação entre o ator e câmera mais livre. 

Este aspecto técnico permite que exista fluidez e expressão daquilo que foi redigido de forma minuciosa e daquilo que pode surgir como do inato humano, social ou cultural em cena. 

Por tal razão, é que se estes roteiros e filmes tem um apelo dramático mais visceral muitas vezes, pois permite elevar o estado psicológico do expectador a uma reflexão e ao mesmo  tempo sobrepor muita coisa que está categorizada fora do seu linear do racional e lógico, mas que está em si mesmo de forma armazenada para ser evocado.

Poderia citar Fellini como um paralelo e contraponto a isso, pois em Amacord por exemplo ele conta uma história comum sem grandes mistérios, porém, cativante pela nossa emoção racionalizada,  ao passo que, um diretor do estilo surrealista trabalha com outros pontos da imaginação e percepção do expectador.

Um filme que poderia ser discutido como pano de fundo para tomar uma impressão rápida e superficial da complexidade do surrealismo cinematográfico e contra-pontuando com as obras mais clássicas deste estilo seria ao meu ver "Brilho Eterno duma Mente sem Lembranças". 

Neste filme há um leque aberto para diversas interpretações sobre as questões do tempo, esquecimento, memória etc. Parece que tal filme nos remete diretamente as mesmas preocupações de Salvador Dali expostas na tela "A Persistência da Memória".

Nesse caso não estamos lidando com situações como a da loucura como por exemplo o psicótico Frank Booth do filme "Veludo Azul" de David Lynch, mas estamos lidando com algo mais próximo do ser humano "normal" e suas tensões emocionais e morais e imaginárias consigo mesmo que podem até levar a loucura em certos casos reais ou a justaposição artística citada pelo Leonardo. 

É de conhecimento de todos que existe em nosso meio comunitário um ser que parece viver dentro desse mundo surrealista ou da loucura "in totum"  personificando tudo que seu imaginário e tensões emocionais lhe sugerem.  Entretanto, não sabemos se isso é de fato loucura justaposta de forma psicótica ou alguma forma de viver drasticamente surrealista.

Deste modo, acho que devemos pontuar uma questão apropriada ao tema já que o Leonardo levantou a lebre: Até onde a ficção e realidade caminham numa mesma direção dentro duma obra cinematográfica surrealista?

Antecipo a minha opinião dizendo que ao meu ver muitas vezes a realidade parece pegar carona com a ficção e vice-versa e isso torna quase indecifrável certos simbolismos trazidos nesses filmes. 

Por outro lado, faz demonstrar uma força de inspiração criativa sobre tudo aquilo que mais é oprimido ou escondido no ser humano devido haver uma forma de consubstanciar o real com o não real. 

Isso me lembra a máxima de Platão: "O corpo é o tumulo da alma" e por tal motivo o imaginário unido ao racional e abstracão podem expressar muita coisa que está sendo mortificada pela realidade. Assim, existiria uma necessidade de que através da arte duma forma ou de outra o ser humano pudesse se libertar disso e exprimir suas mais profundas "sub realidades" contidas em si mesmo.

É isso aí brodi!

Fim da réplica.







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LEONARDO

Você falou bastante sobre como é importante o papel do roteiro para os filmes surrealistas. E é muito interessante perceber como este estilo permite uma combinação muito mais dinâmica de elementos, entre eles a não linearidade.

Inspirado nesta ideia, bastante explorada nos filmes Amnésia [1] de Christopher Nolan e Irreversível [2] de Gaspar Noé, onde as histórias são contadas de trás para frente, vou começar minha réplica levantando os últimos pontos que você citou e seguir uma sequência inversa até chegar na primeira parte, que estávamos discutindo.

Eu sempre evito fazer assertivas categóricas a respeito do conhecimento humano, mas existem algumas teorias da física moderna que defendem o modelo de supersimetria, onde seria possível que, em outro plano da realidade, toda a existência tal qual a conhecemos, poderia estar se desenrolando cronológicamente, ao contrário, do término do evento ao início. Alguns especulariam que este plano existencial poderia se manifestar em nossa realidade, de maneiras sutis, além de nossa limitada percepção.

Esta sua ideia de “realidades contidas em nosso interior” é explorada em vários lugares, desde obras de Shakespeare até no cinema. Eu destacaria a forma como dois Blockbusters modernos trataram este tema, sendo influenciados por filosofias praticamente antagônicas. Matrix [3], dos irmãos Wachoscki é influenciada pela ideia de realidade totalitária que nos impõe restrições ao conhecimento da verdade, como defendido pelos filósofos fortemente influenciados pelo estruturalismo, como Foucault e Jean Baudrillard. Já “A origem”[4], de Christophen Nolan, defende um modelo mais interiorizado da condição humana, como o defendido por Giles Deleuze.

Eu tenho certeza que você deve ter preferido muito mais o filme do Christophen Nolan, por motivos óbvios. Diferente de todos os animais que conhecemos, somos os únicos seres capazes de criar realidades internas, sonhos dentro de sonhos, personagens criados por personagens, mundos dentro de mundos. As implicações metafísicas deste tipo de observação são amplamente vastas, mas a psicanálise também tem um modelo para explicar esses fatores, de forma independente e destoante da visão de Foucault, em vários aspectos.

Entretanto, a forma como o universo onírico foi concebido por Nolan está mais ligado à necessidade deste elemento inverossímil em sua trama, pois todos sabemos que os sonhos não seguem uma sequencia lógica ou mesmo cronológica como a mostrada no filme. Pelo menos não do ponto de vista de quem está sonhando...

A experiência onírica é muito melhor explorada por Neil Gayman nos graphic novels da série “Sandman” e a forma como nossos sonhos refletem quem nós somos é muito bem explorada no romace “Coraline”, do mesmo autor, que também virou filme [5]. Outro filme que retrata de forma mais fidedigna a experiência onírica é o clássico de Alfred Hitchcock, Spellbound [6], onde a cena em que o indivíduo conta seus sonhos para um terapeuta foi dirigida por Salvador Dali.

Este trecho foi fortemente influenciado pelo clássico “O cão Andaluz”, de Luís Bruñuel [7], que era amigo pessoal de Salvador Dali até este dizer publicamente as visões políticas e religiosas de Bruñel, o que acabou lhe causando uma série de problemas profissionais, por ser comunista e ateu.

A influência de Bruñuel na obra de Dali também é vista na obra que Dali fez em colaboração com Walt Disney, que foi finalmente terminada em 2003, Destino [8]. Aos 3:47 minutos tem uma cena em que aranhas brotam das mãos de uma estátua, o que também tinha sido explorado na cena que Dali tinha feito com Hitchcock e também é inspirada na cena de “O cão andaluz”. Após esta cena, uma série de “Sigmund Freuds” andando de bicicletas com pães na cabeça passam pela cena lembrando a influência da psicanálise em todo movimento.

Esta animação é sensacional, pois tem embutida toda uma metáfora que conta toda a história do movimento surrealista no cinema, que aliás foi um movimento que surgiu mais ou menos na mesma época em que o cinema estava surgindo e um ajudou a potencializar ainda mais a importância do outro.

Isto é muito bem mostrado no último filme do Martin Scorsese, “A invenção de Hugo Cabret” [10], que foi indicado à vários oscars. Neste filme é mostrada parte da trajetória de Georges Mélies, que era ilusionista e se tornou cineasta, trazendo o elemento da mágica para as telas de cinema de uma forma bastante inovadora, como mostrada no filme “Viagem à lua”, em uma época em que a viagem espacial era algo Surreal e ninguém tinha tido a ideia mágica de mostrar extraterrestres no cinema [11].

Mas como estávamos falando de filmes com o tema “história dentro de história”, o meu favorito é o esquisitíssimo “Quero ser John Malckovich” [9], que tem uma metáfora extraordinária sobre manipulação e também sobre auto-conhecimento.

A licença artística do Surrealismo dá ao criador possibilidades infinitas. Para o espírito criativo não devem existir amarras, sejam elas estruturais, cronológicas, sociais, ou mesmo intelectuais.

O que é a realidade e o que é ficção?

Quem aprecia o conteúdo artístico, deve, em determinado momento, permitir-se ser enganado. Mesmo que inconscientemente, quando vemos uma cena de um filme, vivenciamos a situação mostrada pelo autor. Quanto mais forte a emoção evocada, melhor é a obra artística e o Surrealismo permite que isso seja explorado a extremos.

Isso é muito bem mostrado nos filmes do Feline “A cidade das mulheres” [12] e sua outra versão em “Feline 8 e ½” [13], mas de longe, o filme italiano que consegue evocar as sensações mais fortes é o filme de Pasoline “Salo” [14], inspirado na obra “120 dias de Sodoma de Marquês de Sade”. É muito difícil não sentir nojo vendo a jovem atriz chorando, sendo obrigada a engolir um bastão de merda, mesmo quando você sabe que aquilo é na verdade uma banana com cobertura de chocolate.

Estes são elementos da realidade que são colocados de uma forma inusitada para causar emoções, normalmente associadas à elementos surpresa.

Elementos surpresa também não faltam no filme “Brazil” de Terry Gilliam [15], o Monty Python que já foi comentado em nosso debate, e que, neste filme, mostrou-se completamente influenciado pelo livro “O processo” de Franz Kafka.

E a influência de Kafka não fica por aí. O conto “A metamorfose” influenciou David Cronemberg no horror biológico “A mosca” [16] e também uma produção recente (e maravilhosa) do Peter Jackson, Distrito 9 [17].

Esses dois filmes trabalham uma série de temas que poderíamos ficar o debate inteiro discutindo, como as transformações que as pessoas sofrem e qual é o impacto de ser diferente, o que não deixa de ser um elemento central também do surrealismo, enquanto ideologia.

Falando em David Cronemberg, eu não poderia deixar de citar um dos filmes mais esquisitos que existem “Naked Lunch” [18], baseado na obra que até então era considerada infilmável de William S. Burroughs, grande expoente da “Beat Generation”.

E falando em Peter Jackson, e de adaptações improváveis de romances para as telas, também não poderia deixar de citar “The Lovely Bones” [19], que é um filme, no mínimo, formidável.

Eu também gostei muito de você ter citado David Lynch em sua réplica, com o sensacional “Veludo Azul”. Este é um diretor que eu conheço muito bem e a fundo toda sua filmografia e gostaria de dedicar mais tempo discorrendo sobre sua obra, mas como já me estendi demais nesta postagem, vou ter que deixar isso para a tréplica.

Enquanto isso, eu te pergunto, Alonso, quais foram os filmes que conseguiram extrair de ti emoções mais intensas? Que emoções foram estas? Quais os elementos que estavam presentes nestas cenas? São elementos surrealistas?

No filme do “Hugo Cabret”, que eu citei acima, ele cita que, quando as pessoas viram a imagem de um trem vindo em direção à câmera pela primeira vez, todos se assustaram no cinema, com a impressão que iam ser atingidos. Isso em uma filmagem em preto e branco e numa qualidade que hoje é considerada péssima.

Hoje temos efeitos especiais e cinemas 3D e está cada vez mais difícil surpreender as pessoas.

Em sua opinião, quais os melhores recursos que um artista deve dispor para fazer arte de qualidade, tendo como objetivo gerar emoções intensas nos expectadores?

Até a próxima!



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 TRÉPLICA


ALONSO

Respondendo aos questionamentos feitos pelo meu interlocutor na sua réplica: O maior recurso artístico que um diretor ou ator de cinema deve possuir para transmitir e gerar emoções intensas nos expectadores, são inúmeros e diversos, mas destaco um primordial que é a capacidade cênica de naturalidade dramatúrgica.

Nada pior que ver um ator ou filme artificial feito com base em encenações pífias e artificiosas sem a menor intensidade. Imaginem um Marlon Brando encenando Dom Vito Corleone sem que este personagem soasse como um  gangster como está descrito na obra de Mario Puzzo. Seria péssimo. Acabaria com o filme. Seria outra coisa, menos o Poderoso Chefão.  

Acho que nesse campo atual do 3D como foi citado, a coisa pode se perder devido ao excesso técnico da ciência cinematográfica. O próprio Coppola menciona que o filme Avatar seria melhor se tivessem apenas algumas cenas – as de ação – em 3D, pois é cansativo o excesso de informação visual ao expectador.

Por isso a capacidade de encenar do material humano é ainda o motor essencial dos filmes sejam eles quais forem e de enredo e estilo forem. São esses elementos de roteiro e enredo que conseguiram tirar de mim diversas emoções desde a comoção até a raiva, devido o casamento desses dois elementos de capacidade cênica natural com roteiro bem desenvolvido.

No filmes do David Lynch, por exemplo o elemento tensão e suspeita pelo o que esta pro vir ou acontecer parece ser algo que sempre vem a tona, já em outros como os filmes de ação que estamos acostumados nós já sabemos o final e perde-se o desenlace de algo novo e emocionante na maioria das vezes.

Os últimos filmes que assisti que criaram novas reflexões sobre diversos temas e incluem na maioria deles diretores europeus como Werner Herzog que dirigiu Vício Frenético e tratou um tema tão banalizado e corriqueiro em filmes policiais de um modo diferente por ser realista e proporcionando ao expectador a torcida pelo anti herói encenado por Nicolas Cage.

Outro filme é o francês Deuses e Homens que venceu o Festival de Cannes alguns anos atrás, onde uma história real duma comunidade de monges proporcionou uma reflexão de como vivenciar a fé na turbulência do mundo cheio de violência. Para finalizar cito ainda “The Sunset Limited” dirigido por Tommy Lee Jones e encenado por ele e Samuel L. Jackson que trata da dicotomia ateísmo vs fé num formato teatral pouco visto em cinema.

Estes filmes possuem em comum a qualidade de transmitir pelo trabalho de encenação as emoções básicas do ser humano e questionamentos profundos sobre muitas coisas que são pouco exploradas de forma não segmentada pela nossa imaginação e racionalidade. Quando estamos diante de filmes assim, o diretor nos coloca dentro duma situação e somos levados pelos fatos ali narrados e transmitidos cena a cena, fala a fala, a nos questionar sobre o quanto há de nós mesmos naquelas emoções ali encenadas ou o que faríamos se estivéssemos em situação idêntica ou similar.

Não soa propriamente como surrealismo isso, mas ao passo que somos capazes de entender o que se manifesta em nós mesmos pela arte isso passa ser uma forma de extrapolar a realidade concreta e passar a explorar em nós mesmos uma realidade interna de pensamentos e reflexões pelo fio condutor da imaginação.

Estes dias vi um filme espanhol “Biutiful” que tem as duas doses (surrealismo e realismo) de certa forma, pois o personagem tem o dom de falar com os mortos ao passo que caminha para sua própria morte sem saber o que vai lhe acontecer no seu cotidiano trágico familiar, laboral, lidando com um câncer. Fica a questão do sobrenatural com o real e até onde elas podem influir na vida das pessoas e nas opções delas. Parece-me que a resposta dada pelo filme nesse caso é curta e grossa. Não vou dizer qual é porque vale à pena analisar esse filme com um espírito aberto para compreender mais sobre a fragilidade da existência humana.   

Os filmes surrealistas em sentido estrito muitas vezes nos levam a esse mesmo elemento de reflexão sobre a existência humana carregada de coisas pesadas e concretas postas para fora muitas vezes em tom lúdico ou visceral dependendo do diretor.  Não importa onde é o começo ou qual será o fim da história, o que importa é que seja captada uma sensação de inquietação e curiosidade sobre aquele mundo ali encenado.

Quando bem encenando esse viés da arte passa a ter um ponto de contato com nosso mundo real. Não se faz arte pela arte apenas, mas se faz arte para compreender a vida real também nesses casos.

Por tal razão é que a qualidade da dramaturgia na encenação deve ser a mais natural, pois é esse elemento que dá sustentação ao personagem e aos desdobramentos da trama previstas em roteiro. Os efeitos especiais e visuais são um algo a mais para reforçar, mas em minha opinião não devem ser o elemento central na maioria dos filmes.

Defendo esse ponto de vista porque creio que os antigos cineastas tinham (com muitos tem ainda hoje) a capacidade de transformar palavras contidas num livro de conto de fadas ou de histórias fora do nosso mundo real e lógico e transpor toda sua vivacidade em imagens, em cenas com atores que interpretem não efeitos técnicos, mas sim aquilo que existe de contido em cada expectador que é uma emoção a ser exposta duma forma ou de outra.

Isso serve de base para uma crítica também. Quem é habituado ao mundo da literatura consegue ter um nível de imaginação e compreensão das minúcias dos filmes devido estar habituado a exercitar na sua própria imaginação individual cenas de contos e histórias, como por exemplo, dum Júlio Verne ou Shakespeare de forma mais autentica a partir do material bruto da linguagem escrita que é “motorizada” pela nossa imaginação e percepção emocional individual.

A crítica é que devido a falta de cultura literária em especial dos mais jovens, porque para estes qualquer filme imbecil cheio de recursos visuais técnicos parece ser muito melhor ou mais valorizado do que um filme onde a arte nos leva a explorar campos da imaginação, reflexão e emoção que estes filmes não tem o quilate de nos levar de forma fecunda.

Espero que o Leonardo comente sobre isso, sobre essa dicotomia da capacidade de imaginar e traçar paralelos do que há de inativo e ativo em nossa imaginação a partir dos apelos cinematográficos.

Cenas dos filmes citados:

Vício Frenético
Biutiful
O Poderoso Chefão
Deuses e  Homens
The Sunset Limited


LEONARDO

Quando deixamo-nos enganar pela magia da arte, fazemos algo que é muito parecido com o que ocorre no processo hipnótico. Por alguns instantes, colocamo-nos no lugar das personagens e vivenciamos suas emoções como se fossem nossas.

Este é um elemento emprestado do teatro.

E como numa história dentro de outra história, você citou “O mundo imaginário do Dr.Parnassus”, que também tem uma história dentro de outra história. Quando a cena mostra alguém interpretando alguém que está interpretando alguém, fazemos um exercício que é muito parecido com estar em um sonho dentro de outro sonho.

Isto é mostrado com maestria no filme “A cidade dos sonhos” de David Lynch, onde Naomi Watts interpreta uma aspirante à atriz que aparece treinando as falas e interpretando de uma forma completamente diferente durante o teste.

E por falar em teatro, me lembrei do fantástico “Santa Sangre”, de Alejandro Jodoroswky, principalmente das cenas do circo, onde a união dos elementos lúdicos do teatro e o cinema surreal são extremamente nítidas. A história segue um roteiro linear, com enredo surpreendente. Diferente do simbólico “Holy Montain” e do chocante “El topo”, Santa Sangre possui uma trama com uma profundidade de metáforas que é apavorante.

Muita gente vai achar de extremo mal gosto as cenas em que um corpo, logo após sua morte, começa a ser comido por galinhas e cachorros (Influência do filme Catch 22 – outro clássico do estilo). Ou a cena em que ele mostra uma turma de pacientes com síndrome de Down indo se divertir em um prostíbulo, com prostitutas gordas horríveis.

Dizem que Jodorowsky não pôde ficar até o fim da exibição do seu primeiro filme “El topo”, tendo que sair correndo para o carro fugindo de uma saraivada de pedras dos expectadores revoltados com as imagens que tinham acabado de ver.

Explorando os abismos dos nossos próprios preconceitos, os filmes do Chileno são sempre extremamente fortes, com cenas que podem trazer repulsa, como pessoas mutiladas e temas perturbadores, como a loucura.

E a loucura, que é um elemento fundamental do surrealismo também invade as telas nas mais diferentes formas. Ao mostrar o abismo da alma humana e as mais variadas formas que temos para conversar com nós mesmos, alguns filmes conseguem desfiar tramas sensacionais como o envolvente “The Jacket”, ou o misterioso “Jacob’s Ladder”, onde você passa boa parte do filme se perguntando o que, de fato, pode estar acontecendo. Todos pensam em suas próprias hipóteses, “é tudo um sonho”, “ele morreu e está no purgatório”, “ele está louco” ou “ele não está louco”.

Recentemente, os mesmos produtores de 300 fizeram o filme “Sucker Punch”, que também desfila surrealismo exatamente no formato blockbuster moderno e numa forma recheado de efeitos especiais, conta uma história muito parecida com a de “Um estranho no ninho”.

De uma forma muito mais simples e primorosa e contando com a formidável atuação de Jack Nicholson, Um estranho no ninho mostra a loucura de um ângulo sensacional, fazendo-nos perguntar o que é aquilo que nos define como pessoas, que é parte da nossa personalidade e o que é aquilo que querem que sejamos. Também é uma metáfora sensacional para o processo de alienação.

Como você bem disse, aspectos simples e fundamentais da sétima arte, como a atuação dos atores pode trazer efeitos muito mais surpreendentes que mega produções com efeitos especiais tridimensionais. Os diretores de “A bruxa de Blair” que o digam.

E é baseado neste conceito de simplicidade que o cinema de vanguarda do “Dogma 95” se sustenta.

Trata-se de uma espécie de “voto de castidade” feita entre alguns diretores em fazer filmes com este “selo”, onde seriam todos baseados nos valores tradicionais do cinema, como estória, atuação e temas, excluindo o uso de efeitos especiais ou tecnologia.

Com esta mesma idéia minimalista, Dogville é uma parábola que conta a história de uma mulher que se esconde de criminosos em uma pequena vila, que a refugia em troca de trabalhos físicos manuais. De uma forma sensacional, Lars Von Trier discute a tolerância humana e a relação poder/submissão de uma forma extremamente profunda sem precisar fazer uso de recursos sofisticados, a não ser a brilhante atuação de Nicole Kidman.

Hoje, no cinema, estes dois elementos convivem o tempo todo. O cinema mais artístico e minimalista é normalmente considerado mais acadêmico e normalmente não são os maiores sucessos de bilheteria. O mesmo vale para a maioria dos filmes com enredo extremamente sofisticados, como são os de David Lynch.

O fato é que assim como nós, quando assistimos a uma cena, o ator também está tentando acreditar em sua própria mentira. Com a finalidade de se colocar no lugar da personagem, o ator passa por um processo de auto-hipnose que o transforma, por alguns momentos, em seu próprio personagem, quando evoca em si os mesmos sentimentos que sua personagem sentiria quando estava vivenciando a cena.

Para conseguir fazer isso, em determinado momento, é preciso saber arquivar sua própria “personalidade” em espaços distintos de sua própria mente. Algumas pessoas inventam personagens para si mesmas o tempo todo, como amigos invisíveis, para que possam tentar idealizar uma existência onde elas representem mais do que efetivamente são.

Hoje em dia isto é um fenômeno muito comum na internet. Páginas de debates podem se transformar em ambientes surreais invadidos por indivíduos com duplas ou triplas personalidades que conseguem até debater sozinhos e enganar a todos com sua ilusão, exatamente como em um filme.

E é por isso que eu prefiro me divertir com a loucura do que me preocupar com ela.

O indivíduo que vive com uma outra personalidade dentro de si possui um conflito consigo mesmo que é muito maior que qualquer conflito que ela possa encontrar com qualquer “adversário” virtual que ela possa encontrar.

Filmes que retratam muito bem este dilema são: o primoroso “Síndrome de Caim”, o formidável “Clube da luta”, e o inteligentíssimo “Personalidade”.

Até onde vai a rede de relações que são criadas quando um indivíduo experimenta uma memória ou apenas a memória de um personagem? Como isto é arquivado no cérebro e como influencia a formação da personalidade das pessoas?

Estas são perguntas muito profundas e também é o tema dos filmes “Fixing the Shadow” e “Caçadores de emoção”, onde os protagonistas interpretam policiais disfarçados que se infiltram em bandos (motoqueiros no primeiro filme e paraquedistas e surfistas no segundo) e acabam vivendo dilemas sobre a forma como seus personagens influenciaram suas vidas.

Até então dois dos filmes que você indicou eram histórias românticas surreais, como o “A casa do Lago” e “Brilho eterno de uma mente sem lembranças”, em contraste com alguns com temática bem mais sombria que eu havia citado. Entretanto, em sua tréplica citastes filmes com temáticas mais profundas e inclusive alguns que ainda não consegui assistir, mas que este debate com certeza me influenciará a fazer isso.

O primeiro da minha lista é o “Biutiful”, cuja temática realmente me pareceu interessantíssima.

Estamos chegando ao fim deste debate e desde já agradeço sua participação, Alonso, que de uma forma inédita me inspirou a escrever sobre um tema que gosto muito. Além disso, acho que se os leitores pesquisarem pelos filmes que indicamos encontrarão um acervo de qualidade e também poderão se aprofundar mais nos temas que discutimos aqui que vão além de mera influência de elementos artísticos em obras cinematográficas mas também as implicações psicológicas e sociais deste tipo de interação.

Espero pelas suas considerações finais para que eu também possa concluir nossa conversa.

Até mais!



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CONSIDERAÇÕES FINAIS






ALONSO

Nesse debate dialogamos sobre a vertente do surrealismo no cinema. Citamos diversos filmes e conceitos e referencias ligadas a isso desde do campo da arte até a filosofia. Essa reflexão sobre esse tema nos leva a ter novos pontos de vista e outras reflexões até mesmo inusitadas .

Neste final de semana zapeando por canais para achar um bom filme eis que me deparo com a "A Paixão de Cristo" de Mel Gibson, e repentinamente pensei o seguinte: Jesus Cristo certamente é o personagem mais intenso da história humana do qual arte se apodera muitas vezes de forma surrealista.

Os motivos que me levam a crer nisso são diversos, mas o central é que a figura de Jesus desperta no ser humano em seus retratos cinematográficos, em especial nesse filme citado, coisas que estão sedimentadas em nosso imaginário e por outro lado tipificadas demais pelo nosso lado racional. 

Para muitas pessoas o filho de Deus vir ao mundo e redimir a humanidade de seu pecado pode ser algo concreto, mas para outras se trata de algo surreal. Algo surreal no sentido do inconsciente do qual a arte se apodera e dá formas que podem conter coisas transcendentes a nossa razão. Jesus Cristo sem dúvida é um personagem que tipifica totalmente esse teor da oposição entre mundo concreto e mundo imaginário pelo simples fato de estar personificado pela arte e pensamento popular em ambos os campos ao mesmo tempo.

Certamente muitos o encaram como personagem e outros como ser real, isso não importa muito. O que interessa é a capacidade da arte do cinema tomar esse personagem e propor questionamentos derivados de nossa imaginação e inconsciente e causar reflexões mais profundas.  

Na Paixão de Cristo temos uma visão mais ortodoxa da realidade do sofrimento e missão de Jesus, ao contrário do que vemos no filme "A última tentação de Cristo" de Scorcese, ou Código da Vinci, onde nos deparamos com a questão colocada de outra forma, ou seja, a de olhar para essa figura  sem os seus dotes transcendentais.

Para fazer o link com o surrealismo de forma mais abrangente diria que o surrealismo tem a capacidade de colocar certas coisas em outros termos de histórias e enredos onde a imaginação fluente e inconsciente podem fluir para um caminho onde podem ser tomadas reflexões culturais e pessoais incomuns ao nosso racional lógico concreto.

O Leonardo falou em colocar-se no "lugar do personagem" e "viver a mentira contata pelo diretor e roteirista do filme". Focado nisso, se fizermos esse exercício assistindo ao filme "A paixão de Cristo", crendo ou não crendo em Jesus de forma religiosa, certamente iremos ter uma experiência sobre humanidade e seus desenlaces mais comuns em nosso dia a dia.

Cada cena de sofrimento do filme tem seu contraponto com algo que está contido em cada ser humano e sua rede de relações e memórias e personalidade, assim como os dilemas dum filme como "Fixing the Shadow" geram reflexões. 

A grande questão levantada pelo Leonardo em sua tréplica é sem dúvida o que devemos tentar responder assistindo filmes dessa forma "no lugar no personagem": Até onde vai a rede de relações que são criadas quando um indivíduo experimenta uma memória ou apenas a memória de um personagem? Como isto é arquivado no cérebro e como influencia a formação da personalidade das pessoas?

Quando "experimentamos" o personagem "Cristo" temos que retirar de nossa mentalidade diversas inibições racionais e obstáculos que a primeira vista parecem ser memórias e derivados de nossas personalidade, mas que no fundo são frutos de coisas advindas de nossas relações pessoais mais profundas com uma "história" já conhecida pela humanidade inteira.

Poderíamos fazer o mesmo exercício de entrar na pele do personagem em filmes onde os protagonistas são um Hanninal Lecter, Anton Chigurh ou um Joseph Merrick, Dr Treves, mas o resultado não seria o mesmo devido ser o personagem "Jesus Cristo" algo que Dali diria que é "reminiscência da memória". Isto é, algo concreto, mas que nossa memória tem uma lembrança apagada e distante de seu real teor e por isso se torna algo muito mais passível de ser imaginado pelo nosso inconsciente de forma desordenada e sem tanta sobriedade racional.

Os filmes surrealistas na verdade levam a isso, a recordar e interagir com coisas que possuem no seu fundo remoto o teor do real, mas que estão inconscientes em nossa memória. Cada personagem celebra um fragmento disso e cada enredo se foca numa minúcia desse paradigma real x imaginário. Cada um de nós pode ter algo desses personagens ou uma parcela de nossas emoções ou intenções escondidas são descritas por algo encenado por estes personagens e filmes. Cabe a nós decifrar. 

Por essas razões é que o surreal no cinema desperta em seus fãs uma vasta gama de sensibilidade e reflexão, pois é a arte imitando a vida duma forma mais sensível e ao mesmo tempo profundamente artística. Deixo assim uma questão levantada num desses filmes citados por um desses personagens: "Para qualquer coisa em particular, pergunte o que é em si mesmo? O que é tão natural?"

Encerro por aqui minha participação nesse debate agradecendo ao Leonardo pela paciência e gentileza e aos leitores que refletiram sobre nossas mal versadas linhas sobre esse tema repleto de riqueza cultural.




The  passion of Christ
  
http://www.youtube.com/watch?v=f33ieCWRWlI&feature=related

Salvador Dali

http://www.youtube.com/watch?v=QHH28cRXu0U

http://www.youtube.com/watch?v=L2WJu32WxAw&feature=related



LEONARDO




De fato, a resposta ao estímulo artístico é dependente da ação de áreas inconscientes da mente. Também sabemos que boa parte do nosso inconsciente é formado por arquétipos que são partilhados por vários grupos humanos.

E foi assim que suas considerações finais fizeram me lembrar de uma cena do filme “A última tentação de Cristo” de Martin Scorsese.

O filme narra a trajetória de Cristo, mostrando a mesma sequencia de eventos que é mostrada no evangelho, mas brinca com a possibilidade surreal (neste contexto) de que Cristo não tivesse morrido na cruz e ao invés disso tivesse fugido e formado família com Maria Madalena.

E enquanto caminhava com sua família em uma praça, viu um homem pregando para várias pessoas. Era Paulo, contando como deixou de ser Saulo, após ter tido uma mensagem de Cristo, que o deixou cego por 3 dias.

Jesus então se aproxima e pergunta a Paulo se ele já havia estado com Cristo. Paulo responde que não, mas fala sobre os relatos de seus milagres e de como foi crucificado para salvar a todos os nossos pecados.

Jesus acusa-o de mentiroso e diz para todo o público que Paulo estava querendo enganá-los. Em seguida vira suas costas e vai embora, mas é acompanhado por Paulo que quer saber mais sobre aquele misterioso homem. Ao insistir em saber por que aquele homem tinha ficado tão enfurecido e o acusado de mentiroso, eis que Jesus responde:

“_Eu nunca fui crucificado e nunca voltei dos mortos, sou um homem como todos os outros. Por que está contando essas mentiras? Pela primeira vez em minha vida eu a estou aproveitando. Então não saia por aí falando mentiras sobre mim, ou eu conto a todos a verdade!

Paulo responde:

_Olhe a sua volta, para toda essa gente. Percebe o quão infelizes eles são? O tanto que eles sofrem? A única esperança deles é o Jesus ressuscitado. Eu não ligo se você é Jesus ou não. O Jesus Crucificado foi o que salvou o mundo e isso é tudo o que importa.

Jesus:

_Você não pode salvar o mundo através de mentiras!

Paulo:

_Eu criei a verdade a partir daquilo que as pessoas precisavam, daquilo que elas acreditavam. Se eu tiver que crucificar você para salvar o mundo, é isso o que vou fazer. E se tiver que te ressuscitar, eu faço isso também, quer você queira ou não.

Jesus:

_Eu não vou deixar. Vou contar a todos a verdade.

Paulo:

_Pois conte. Quem vai acreditar em você? Você não sabe o quanto as pessoas precisam de Deus. O quão felizes ele as pode fazer. Elas morrem felizes em nome de Jesus Cristo, o filho de Deus, o Messias! Não você. Não por você. Mas foi bom te conhecer. Agora sei tudo sobre você. E o meu Jesus é muito mais poderoso. Foi bom te conhecer para saber disso.”

“Eu criei a verdade a partir daquilo que as pessoas precisavam”.

Esta frase reflete muito bem como a arte conversa com as pessoas e também como as pessoas conversam com a arte.

Com certeza, Jesus Cristo é uma das personagens que evocou mais sentimentos intensos ao longo da história.

E não importa a dimensão de veracidade dos registros históricos que temos disponíveis hoje.

O fato é que a atitude revolucionária de um grupo de pessoas em uma província quase insignificante do Império Romano teve repercussões que moldaram completamente a forma de pensar do mundo inteiro em gerações futuras.

E ao tentarmos nos colocar no lugar de líderes como Jesus Cristo, idealistas sem medo de morrer por seus ideais, vivenciamos ao máximo as aspirações heroicas dos seres humanos, o que com certeza influenciou grandemente a temática de um número gigantesco de histórias ao longo dos tempos.

Por que se você pensar bem, a maioria das histórias humanas são recontagens, com a inserção de elementos que mudam ao longo dos anos de acordo com as transformações culturais de uma sociedade, mas que mantêm as mesmas raízes em símbolos capazes de despertar nosso inconsciente para a experiência do que parece novo, mas é novamente um reflexo de nossos próprios sonhos.

Quando o artista possui licença artística para fazer livres associações, pode criar enredos que podem despertar de forma inusitada, sensações que fogem àquilo que experimentamos regularmente.

É por isso que o Surrealismo já está embutido na arte e também na história muito antes de ter o movimento oficializado.

Toda a história da humanidade foi contada e recontada, de pessoa à pessoa, de livro à livro e a cada nova cópia, novas intenções escondidas nos arquétipos eram manifestadas e misturadas em uma imensa sopa de letrinhas que forma a cultura humana.

Eu concordo contigo que nada se compara à leitura e a forma como a ausência de elementos é importante para que possamos criar o mundo imaginário em nossas mentes, muito antes de ter uma imagem pré-concebida daquilo, o que acabaria com o encanto.

É muito legal ler um livro cheio de elementos imaginários e depois assistir a um filme que fez a interpretação daqueles elementos, de acordo com a imaginação do diretor do filme.

Mas se você já assistiu ao filme e depois vai ler o livro, estará com suas memórias contaminadas por aquela experiência e tudo o que imaginar, de alguma forma, será influenciado pelas imagens que viu no filme.

Entretanto, do ponto de vista criativo, acredito que nenhuma outra forma de expressão artística humana possa se comparar ao cinema em grau de variáveis que interagem ao mesmo tempo.

O que está escrito no roteiro terá que ser interpretado na mente do diretor, dos atores, dos profissionais de cenografia e a mistura de tudo isso resulta em uma obra que mistura teatro, fotografia e música de uma forma extremamente rica.

E depois disso, terá que ser interpretado pela plateia.

A função da indústria é fazer filmes que rendam lucro. Do outro lado, para a criação de algo artisticamente rico e intimamente intenso, o artista precisa se despir de todas as suas amarras e permitir que a livre associação o conduza para o melhor que pode conseguir de si mesmo.

Por isso, o que é artisticamente rico, poucas vezes recebe reconhecimento financeiro proporcional, sendo que na maioria das vezes o que acontece é justamente o oposto.

E sendo bastante realista, é bom saber que temos um grupo de discussão onde podemos desenvolver um assunto como este, pois a cada dia que se passa, mais me parece que as pessoas estão cada vez mais viciadas em mais do mesmo.

Agradeço ao Alonso pela oportunidade de desenvolver um assunto tão fascinante como este, neste agradável debate.

Paz a todos.

Leonardo Levi.



  

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